Deus vai na frente, pedalando



Deus chegou em sua bicicleta, cheio de forma não me parecia cansado. Eu que me sentia solitária com todo aquele papo de fim do mundo, estava deprimida, triste, mas fula com Deus! Ele tinha que aniquilar o mundo exatamente durante minha existência, encarnação, geração... sei lá! Eu tinha que participar disto! Eu não podia passar sem mais essa!

Todos haviam ido para algum lugar, os celulares não funcionavam e os terremotos eram cada dia mais frequentes... Eu temia morrer sozinha, mas Deus não vacilou nem mesmo na minha partida. Enquanto ficava desviando meu pensamento de imaginar como seria morrer entre os escombros de minha casa, agonizando até o fim, reclamando à Deus por sua falta, cheia de auto piedade, Ele apareceu! 
Cheio de graça, apressado e me apressando. 
Eu falei; 
— Espera Deus! Esqueceu que tenho filhos, marido e cachorros? Ele me garantiu que os levaria, um por um e que logo estaríamos juntos, mas que não caberíamos todos na bicicleta e que aquele era o momento reservado para mim.

Não vacilei, montei na garupa da bicicleta e segui em frente com Deus. Fomos conversando e nem sequer notei, em que ponto a paisagem havia mudado, quando dei por conta estávamos  no céu. Mas o céu não era um céu sobre nuvens, cheio de jardins, lagos e pessoas vestidas de branco. Era sim, como se fosse uma outra Terra, dentro desta Terra, e o sol não era tão impactante, nem sequer dava para vê-lo embora fosse tardinha, algo perto de 15:00 h.  

Seguíamos por uma estradinha de chão batido, eu olhava ao horizonte enquanto Deus falava de fé, arrependimento e perdão... notei ao fundo,  a direita, uma metrópole e ao meu lado esquerdo, uma comunidade carente e ainda adiante, para onde seguíamos uma zona litorânea. Deus pedalava com força estávamos a cerca de 60 km por hora quando indaguei a Deus...

— Pensei que você estivesse me levando para o céu.
— Mas estamos no céu.
— Tem favela no céu, você teve a coragem de criar favelas até no céu? Quando você vai dar uma chance ao pobre, injustiçado?
— Cada um tem direito ao céu que imagina e que gosta! O homem se fez escravo de suas vontades desde a criação do livre arbítrio. Não tem cabimento, levar um ser que ama a cidade grande para o sertão, ou ainda um que ama a comunidade para um palacete de vidros transparentes e talheres de prata. Isso seria o inferno e não o céu!

Confesso fiquei impactada! Deus mais uma vez me surpreendia. 

E Deus continuou com sua conversa sobre fé, arrependimento e perdão por cerca de mais um quilometro, quando chegamos em uma ruazinha, como a de uma vila e eu avistava num portão um alvoroço. Quanto mais Deus se aproximava, mais aquelas pessoas se agitavam e eu pude ver que aqueles semblantes, não me eram estranhos e logo notei que se travavam de meus familiares, quase todos eles, ou ao menos os que haviam morrido. Pulei da bicicleta e corri em direção a eles, deixando para trás, Deus que logo deu meia volta e pedalando voltava na direção da qual tínhamos vindo.

Pulei nos braços de minha tia, e logo vi minha mãe e ao ver minha mãe, sabia... ele estaria ali, então entrei pela casa a sua procura, casa essa que notava era a da minha infância. E sim ele estava lá, junto a minha parentela com o mesmo sorriso, menino, meu filho! Nos abraçamos e chorei de alegria não consegui expressar com palavras o que sentia, então nos alongamos no abraço. Como era boa sua presença, como era bom estar ali com todos aqueles que eu amava. Eu daria minha vida por um momento como aquele. Ah daria!

Por um momento fiquei preocupada com meu outro filho e nesse momento fui arremessada para a casa onde Deus havia ido me buscar e ouvi Deus falando ao meu ouvido...

— Arrependam-se de seus pecados, pois...
— Como assim Deus? Como criar um mundo de pecados e pedir fé, arrependimento e perdão? O que você quer dizer com isto? Se a humanidade é essencialmente pecadora, como aniquilar o pecado de seus corações?

Deus apareceu nesse momento e ele era de uns 40 anos, não era belo, não era feio, não era magro, mas não era gordo. Era Deus apenas. E me parecia estranhamente humano. 

— Criei o universo para nele habitar a compaixão. Sou tão louco pela compaixão que inventei um espaço apenas para poder apreciá-la, mas ao criar este espaço tive que inserir nele o ego. Num mundo onde habitam compaixão e o ego, surge a servidão e assim sendo, o escravo. E o homem ficou escravo do ego, digno de pena. Digo digno de pena, pois, a compaixão sendo livre não perdoa o ego e se ausenta. Quando clamo por fé, arrependimento e perdão é para que o homem se dispa do ego, voltando a ser essencialmente Adão. Sem máscaras, sem personagens. Apenas homem, pois o pior da humanidade é o homem que tenta deixar de ser o que é para ser o que não é, e que para se firmar como o que não é, torna-se vil. Um julgador, incapaz de se colocar no lugar do outro, um preconceituoso. E ainda um causador de sofrimento que atribui sua maldade ao outro, geralmente a mim. Não há pecado maior que o de não poder acreditar em si mesmo e se fazer escravo, escravo de si. Pobre do homem que tenta deixar de ser humano.

Eu respirava, meu cachorro lambia minha face e minha gata dormia ocupando a maior parte de minha cama.

E mais uma vez Deus me surpreendeu!

E tudo isso, não passou de um sonho.

rosangela ataíde

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